quinta-feira, 1 de abril de 2010

Direito e Moral

01 – Com efeito, é preciso saber distinguir conceitos sem, contudo, criar separações absolutas. Neste ponto, sábia lição de Miguel Reale diz o seguinte:
“ Encontramo-nos, agora, diante de um dos problemas mais difíceis e também dos mais belos da Filosofia Jurídica, o da diferença entre Moral e o Direito. Não pretendo, num curso de Introdução ao Estudo do Direito, esgotar o assunto mas, apenas, dar alguns elementos necessários para que os senhores não confundam os dois conceitos, sem, todavia, separá-los. Nesta matéria devemos lembrar-nos de que a verdade, muitas vezes, consiste em distinguir as coisas, sem separá-las. Ao homem afoito e de pouca cultura basta perceber uma diferença entre dois seres para, imediatamente, extremá-los um do outro, mas os mais experientes sabem a arte de distinguir sem separar, a não ser que haja razões essenciais que justifiquem a contraposição”.

02 – Direito e Moral, da mesma forma que gera cisões, também é debate para junções e sincretismos.

03 – Para Benthan e Jellineck, seguidos por Kant, adeptos da teoria do mínimo ético, o Direito consiste em um mínimo da Moral declarado obrigatório. Logo, o Direito não seria algo diverso da moral. Segundo esta concepção, tudo o que é jurídico é moral, porém nem tudo o que é moral é jurídico...

04 – A teoria acima exposta não é imune de críticas. É possível pensar autonomia do Direito em relação à Moral. Neste sentido, Miguel Reale leciona o seguinte:
“ Há um artigo no Código de Processo Civil, segundo o qual o réu, citado para a ação, deve oferecer a sua contrariedade no prazo de 15 dias . E por que não de 10, de 20, ou de 30? Se assim fosse, porém, influiria isso na vida moral? Também não. Outro preceito do Código Civil estabelece que os contratos eivados de erro, dolo ou coação, só podem ser anulados dentro do prazo de 4 anos. Por que não no prazo de 5 anos ou de 3 anos e meio? São razões puramente técnicas, de utilidade social, que resolvem muitos problemas de caráter jurídico. Não é exato, portanto, dizer que tudo o que se passa no mundo jurídico seja ditado por motivos de ordem moral.
Além disso, existem atos juridicamente lícitos que não o são do ponto de vista moral. Lembre-se o exemplo de uma sociedade comercial de dois sócios, na qual um deles se dedica, de corpo e alma, ao objetivos da empresa, enquanto o outro repousa no trabalho alheio, prestando, de longe em longe, uma rala colaboração para fazer jus aos lucros sociais. Se o contrato social estabelecer para cada sócio uma compensação igual, ambos receberão o mesmo quinhão. E eu pergunto: é moral? Há, portanto, um campo da Moral que não se confunde com o campo jurídico. O Direito, infelizmente, tutela muita coisa que não é moral. Embora possa provocar nossa revolta, tal fato não pode ficar no esquecimento. Muitas relações amorais ou imorais realizam-se à sombra da lei, crescendo e se desenvolvendo sem meios de obstá-las. Existe, porém, o desejo incoercível de que o Direito tutele só o ‘lícito moral’, mas, por mais que os homens se esforcem nesse sentido, apesar de todas as providências cabíveis, sempre permanece um resíduo de imoral tutelado pelo Direito”.

05 – A Moral é o mundo da conduta espontânea. Trata-se, em verdade, de uma adesão do espírito ao conteúdo de regras e princípios. Ninguém é autenticamente bom pela violência. Para Kant, é preciso cumprir o dever pelo mero dever, sem prêmios ou sanções. Logo, nem sempre é possível conceber um ato moral forçado. Para Miguel Reale, a Moral é incompatível com a violência. Para reforçar isto, insta trazer à colação o seguinte trecho:
“ A Moral é incompatível com a violência, com a força, ou seja, com a coação, mesmo quando a força se manifesta juridicamente organizada. O filho que, mensalmente, paga a prestação alimentícia por força do imperativo da sentença, só praticará um ato moral no dia em que se convencer de que não está cumprindo uma obrigação, mas praticando um ato que o enriquece espiritualmente, com tanto mais valia quanto menos pesar nele o cálculodos interesses”.

06 – Para Reale, a Moral é isenta de coerção, ao passo que o Direito tem coercibilidade. Logo, o jusfilósofo vê extrema compatibilidade entre Direito e força.

07 – Apesar do discurso da força, ainda assim, no Direito, a regra é a obediência. A coação é exceção.

08 – Assim sendo, a coação no Direito nem sempre é efetiva, mas apenas potencial.

09 – As leis podem receber críticas, mas, em regra, devemos agir em conformidade com elas. Para Rousseau, no contraste entre governo das leis X governo dos homens, deve viger o primeiro.

10 – A partir desta constatação é possível pensar no caráter de heteronomia do Direito. Há a possibilidade de validade objetiva e transpessoal da lei. O Direito tem um quê de alheidade, ou seja, ser seguido independente da pretensão dos sujeitos. Nem sempre pagamos tributos com um sorriso nos lábios.

11 – O apego às leis é fundamental, mas vicissitudes e exageros devem ser condenados. Miguel Reale disse o seguinte:
“A lei pode ser injusta e iníqua mas, enquanto não for revogada, ou não cair em manifesto desuso, obriga e se impõe contra a nossa vontade, o que não impede que se deva procurar neutralizar ou atenuar os efeitos do ‘direito injusto’, graças a processos de interpretação e aplicação que teremos a oportunidade de analisar”.

Discordamos do nobre jusfilósofo. Não é razoável obedecer leis injustas. Rousseau preconizou o direito à resistência às leis más. Nos tempos contemporâneos, temos o controle de constitucionalidade como boa via para extrair do sistema leis iníquas.

12 – Miguel Reale busca destacar, evocando para si originalmente em sua assertiva, a relação entre Direito e bilateralidade atributiva. Neste sentido, o jusfilósofo assim se expressou:
“ Podemos dizer que o pensamento jurídico contemporâneo, com mais profundeza, não se contenta nem mesmo com o conceito de coação potencial, procurando penetrar mais adentro na experiência jurídica, para descobrir a nota distintiva essencial do Direito. Esta é a nosso ver a bilateralidade atributiva.
Bilateralidade atributiva é, pois, uma proporção intersubjetiva, em função da qual os sujeitos de uma relação ficam autorizados a pretender, exigir, ou a fazer, garantidamente, algo”.

Para Reale, a Moral evoca solidariedade, caridade sem exigibilidade, ao passo que o Direito traz consigo a exigibilidade. O problema na teoria de Reale não é seu conteúdo mas a pretensão de originalidade. Pode até ser limitação cognitiva de nossa parte, mas, em nosso modesto entender, a bilateralidade atributiva não renova em nada a já decantada heterononímia.

13 – A distinção Moral e Direito remonta breves dados históricos. Miguel Reale assim pontificou:
“Houve, desde a mais remota antiguidade, pelo menos a intuição de que o problema do Direito não se confunde com o da Moral. Desde os pré-socráticos até os estóicos, passando pelos ensinamentos de Platão e de Aristóteles, as relações entre Moral e o Direito são focalizadas sob diversos ângulos. Alguns deles coincidem com os que ainda são lembrados atualmente, mas não se pode dizer que tenha havido na Grécia o deliberado porpósito de apresentar notas distintivas entre o mundo da moral e o jurídico. O mesmo se pode dizer quanto aos jurisconsultos romanos, muito embora já observassem que non omnis quod licet honestum est, ou que cogitationis nemo poenampatitur. Estas duas afirmações já demonstram que os juristas romanos vislumbravam a existência de um problema a ser resolvido, sobre a distinção entre o Direito e a Moral. Daí terem dito que ‘ninguém sofre pena pelo simples fato de pensar’ e, por outro lado, que ‘nem tudo que é lícito é honesto’.”

14 – Com o Iluminismo e a secularização do Poder, recruscedeu a distinção entre Moral e Direito.

15 – Para Thomasim, seguido, mais tarde, por Kant, o Direito representa um foro externo, ao passo que a Moral simboliza um plano de consciência de foro íntimo. Esta concepção, inobstante seu valor, gera um radicalismo, ou seja, o exagero da separação entre Moral e Direito.

16 – O jurista deve, em uma série de ocasiões, analisar o mundo das intenções. Cai assim a distinção absoluta Kantiana entre Direito e Moral. Exemplificando isto, Reale assim expôs:
“Será exato dizer que o Direito só cuida daquilo que se exterioriza, não levando em conta o mundo da intenção? Em primeiro lugar, não é possível separar a ação dos homens em dois campos estanques. Ela é sempre una e concreta, embora possa ser examinada em dois momentos, sem se decompor, propriamente, em partes. Por outro lado, se é certo que o Direito só aprecia a ação enquanto projetada no plano social, não é menos certo que o jurista deve apreciar o mundo das intenções. O foro íntimo é de suma importância na Ciência Jurídica. No Direito Penal, por exemplo, fazemos uma distinção básica entre crimes dolosos e culposos. Dolosos são as infrações da lei penal que resultam da intenção propositada dp agente. O indivíduo que saca de uma arma com intenção de ferir seu desafeto, pratica crime doloso, porque o ato é uma concretização de sua vontade consciente. O crime culposo, ao contrário, é aquele pelo qual alguém causa dano, mas sem intenção de praticá-lo. Se uma pessoa atropela um transeunte, matando-o ou ferindo-o, evidentemente existe uma infração da lei penal, desacompanhada, no entando, de intenção dolosa; é um crime culposo. Se ficasse provado, porém, que o atropelamento se deu intencionalmente, e que o automóvel foi o instrumento de um desígnio criminoso, teríamos um crime doloso. Estão vendo, portanto, que na esfera penal é necessário levar em consideração o elemento íntimo ou intencional”.

17 – O Direito jamais cuida do homem insolado em si e per si, mas sim enquanto membro da comunidade. O Direito contempla a vida em sociedade, a alteridade.

18 – Finalizando, Reale realça as chamadas “normas de trato social”, as quais, particularmente, apenas enxergamos um contexto diferenciado da Moral, sem necessidade de tanto rigor sistemático. Para Reale as normas de trato social simbolizam costumes, noções de decoro, cortesia e etiqueta. Tal qual a Moral normas de trato social são seguidas espontâneamente, sem coercibilidade. Detalhe importante a ser frisado é que tal “espontaneidade” no seguimento de normas de trato social nem sempre é sincera, podendo ser maculada por maquiavelismos e ações estratégicas. Neste sentido, Reale acentuou o seguinte:
“ Por outro lado, não é indispensável que os atos de bom tom ou de cavalheirismo sejam praticados com sinceridade. Atende às regras de etiqueta tanto o homem desinteressado como quem se serve delas com intenções malévolas. Aliás, é o hipócrita quem mais se esmera na prática de atos blandiciosos.
Para que seja atendida uma norma de trato social basta, com efeito, a adequação exterior do ato à regra, sendo dispensável aderir a seu conteúdo: nesse ponto, as regras de trato social coincidem com o Direito, no que este possui de heteronomia. Por outro lado, as regras costumeiras são bilateria, tanto como as da Moral, mas não são bilateral-atributivas, razão pela qual ninguém pode exigir que o saúdem respeitosamente: a atributividade surge tão-somente quando o costume se converte em norma jurídica consuetudinária, ou então quando o ato de cortesia se transforma em obrigação jurídica, como se dá com a audação do militar ao superior hierárquico, que passa a ser ‘continência’.”

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